segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Um projecto

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Hoje é o dia em que me encontro finalmente desiludido. A espera foi longa, a espectactiva a soar a cepticismo por todo o lado e a inocência... longe.

Isto não é o que esperava que fosse, não são mais Legos, nem são mais corridas de bicicleta. Eu queria ser bombeiro e uma moça da minha turma queria ser cabeleireira. Tão simples, tão suave. Um dia podíamos ter casado, ter dois filhos e uma casa com um jardim e um golden retrivier. Eu era bombeiro e ela tinha um salão. Eu chegava a casa e era, para todos os efeitos, um homem. Ela chegava a casa e era, para todos os efeitos, uma mulher. O nosso mais novo gostava de brincar com o cão, o mais velho tinha aderido à moda dos computadores. Tínhamos casais amigos que iam lá almoçar ao sábado. Ao domingo convidava os meus sogros ou os meus pais. Íamos à missa e eu acreditava em Deus. Eu, e a moça com que havia casado, íamos tendo as nossas discussões que mantêm viva a essência de um casal e íamos vendo a nossa prole a crescer. Aos 24 o mais velho casava-se com a filha do senhor da mercearia e iam viver para Lisboa, que segundo ele, era terra das oportunidades. Ainda nos víamos ao fim de semana de 15 em 15 dias. O mais novo era agora um viajante sonhador. Investia em música e em cannabis e sonhava viver em Cuba e ter uma banda de reggae. Um dia juntava-se com uma moça que conheceu na Roménia e imigrava finalmente... para a Suiça. Lá, tirava os piercings e escondia as tatuagens e somava 30 anos. Trabalhava num restaurante movimentado de Syon e a mulher era recepcionista num hotel. Aos 56, a moça que havia casado comigo, começava a ter diferenças de humor. Entrara na menopausa. Sem filhos em casa, sem animais de estimação, o stress aumentava e aos 65 eu era um capitão reformado. Ela mantia um salão aberto, desta vez em casa, onde mantinha clientes habituais: a mulher do senhor do talho e a solteirona de quem o povo dizia passar muito tempo em casa do Sr. Prior. Já não via o meu mais velho há 3 anos, depois já tinham passado 5. O meu neto de 9 era desdentado, mas só sabia pelas fotografias. Com 73 anos os problemas de saúde intensificavam-se e perdia capacidade muscular. O meu mais velho voltava num domingo e o mais novo também para discutirem partilhas. Discutiam e chateavam-se, pois ambos queriam o terreno ao lado da igreja. Acabavam por dividir o terreno, com processos em tribunal por causa de dois metros quadrados. Amanhã iria fazer 84 anos e estava sentado na minha poltrona, ao lado da moça com quem havia casado, a ver um programa com histórias da vida que emocionam pessoas destas idades. Já não conseguia chegar ao café central para jogar à sueca com o sacristão, com o presidente da comissão fabriqueira e com o meu cunhado, ou com o filho do dono, quando o meu cunhado ia à pesca. Sentia uma dor incomum do lado esquerdo do peito, mas não sabia identificá-la. De repente, o ar era escasso nos pulmões. Tinha sentido a pulsação a parar. Retia a imagem da apresentadora a chorar com a história do senhor que reclamava a guarda da filha deficiente... Depois, tudo brilhante, depois o meu neto, depois a moça com quem havia casado no dia em que havia casado, depois o mais velho, depois o mais novo, depois aquele acidente em que consegui reanimar o rapaz de 21 anos, depois aquele bife pimenta que comi quando fui a Lisboa ter com o meu mais velho, depois a minha mãe e o meu pai depois escuro e uma lágrima.


Era um bom projecto, mas foi-se. Eu não sou bombeiro e a moça estudou um daqueles tais cursos superiores. Nunca mais a vi. Ela era bonita. O meu cepticismo hoje reclama com a certeza da desilusão para quem existe.

Hoje descobri a complexidade das coisas.

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6 comentários:

Anónimo disse...

Já te disse que escreves muito bem e que adoro ler os teus posts?

Não?

Escreves muito bem e adoro ler os teus posts :)

Beijinhos*

Anónimo disse...

lol pois, mas não estava a falar na qualidade de Inquisição, estava a falar a título pessoal ;)

XoXo

Fábio disse...

muito bom ;)

ZicKroft disse...

you, motheeer fuckerr....lindo!

A moça era boa?

ZiCkRuFt disse...

Ela era bonita... E jeitosinha.

Bárbara disse...

Demais...