sexta-feira, 23 de outubro de 2009

"A Bíblia é um manual de maus costumes"

"A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana” - José Saramago.

É esta a frase da mais recente polémica do país (e eventualmente de algum Mundo por aí). Os jornais têm que vender, os programas da manhã têm que ter coisas para falar além dos desgraçadinhos e da Maddie (sim, ainda se fala dela...) e os notíciários têm que alimentar o povo com a guarnição do seu prato favorito - polémica (desgraça, indignação e polémica é o prato completo, que ao que temos visto, é mais como uma diária de um restaurante banal onde vão almoçar banqueiros, padres e empreiteiros).
Mais uma vez cá estamos, num
déjà vu cíclico, a comentar as palavras do "nosso" José Saramago. A revolta de alguns (felizmente, alguns) é imensa e há quem já "convide" Saramago a renunciar a cidadania portuguesa... Nem o Nobel da Literatura arranjaria melhor palavra para descrever isto como a que eu arranjei, que é... Ridículo.

Desculpem-me a limitação que o meu cepticismo confere, mas não será importante dar relevância a algo carnal e concreto como é o caso do nosso único Nobel? Repito, o nosso único Nobel, que vive em Espanha... E estas polémicas suportam um exílio voluntário de alguém que nunca foi ignorante e despercebido o suficiente para cá poder ficar (como se não bastasse a mão democrática e livre que suportava um lápis azul democrático e livre, em 1991, a vetar o concurso do "Evangelho Segundo Jesus Cristo" ao prémio Literário Europeu).

"Eu limito-me a levantar as pedras e a mostrar esta realidade escondida atrás delas. Nada disto existiu, está claro, são mitos inventados pelos homens, tal como Deus é uma criação dos homens", continua.

José Saramago não é um homem de deixar pensamentos reservados só para si. É um pensador dos dias de hoje, um homem de partilha e de discussão não dissimulada. Falta de ética nas palavras? Ele passou pelo 25 de Abril. Hoje diz sem o pudor metafísico, tabu de gerações, o que pensa. O jeito descomedido sempre foi a sua forma de estar, mas são feitios, personalidades, e é tudo legítimo. Graças aos cravos podemos escuta-lo e explorar hoje a sua mente que é brilhante pelo reconhecimento de muitos, não necessariamente portugueses...

Escrevo isto por irritação. Irritação do que somos. Pelintras, donos do próprio umbigo, indignados por natureza e ofendidos pelo humor que não nutrimos. Tudo dá lugar a ofensa, tudo dá espaço a indignação quando a ironia é superior à nossa ignorância e quando as convicções contra-dogmáticas nos transcendem. Transcendidos somos nós por não conseguir compreender uma piada sobre a nossa bandeira, ou não conseguir assimilar um pensamento que é contrário ao nosso. A liberdade deve impor-se ao preconceito e quando o confronto é uma simples partilha de argumentos, é saudável, porque somos seres sociais e é com todo o respeito.

Quando temos 11 senhores a meter bolas numa baliza, durante um campeonato Europeu, colocamos bandeiras nacionais nas varandas, janelas, persianas, telhados, automóveis. Às vezes, até colocamos duas na varanda.
Quando temos um génio da Literatura a emergir, a saltar para um concurso Europeu, enviamo-lo para Espanha. Quando ele dá um novo salto, questionamos o que irá fazer com o dinheiro que ele mereceu e achamos o silencio justificação de julgamento. Quando ele mostra as suas convicções sobre um outro livro e entidade, convidamo-lo a deixar de ser definitivamente português.

Um dia, aprendíamos a rir de nós próprios. Um dia aprendíamos a ignorar opiniões que não nos dizem nada. E quem sabe, um dia aprendíamos a ouvir e a questionar. Somos o que somos. Sérgio Godinho diz brilhantemente «Este é o único país em que se diz "É o país que temos"».

As vendas de "Caim" dispararam, as vendas da Bíblia permanecem as mesmas. Saramago ganhou esta batalha comercial, mas humildemente recomenda aos católicos "que leiam a Bíblia", apelando desta forma, à compra do maior
best-seller de sempre.



Sejam felizes, com fé ou sem ela. Esta não irá suprimir nem aumentar a vossa inteligência.

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8 comentários:

ZicKroft disse...

Eu estou arrepiado e apetece-me dar-te um beijo na boca. Jamais farei um Post só para não ter de tirar este da página principal.
E não, não sou ateu, acredito em algo, algo que não sei explicar, mas algo que me permite ter opinião daquilo que acredito, porque como disseste: com fé ou sem ela, jamais omitirei a inteligência e o sentido crítico que me habita.

Tenho dito e vou tomar banho.

Anónimo disse...

Também me parecem ridículos aqueles que dizem que ele devia deixar de ser português e que nos envergonha. Mas tb me parece que o Saramago carece de alguma sensibilidade e bom-senso (e peço desculpa à Jane Austen pelo plágio =P), independentemente de toda a genialidade que lhe atribuem. Parece-me ainda mais que toda esta pretensa polémica não passou de uma manobra de auto-promoção. E isso incomoda-me bastante mais que o comentário propriamente dito.
Posto isto, está bem escrito, parabéns ao chefe ;)

ZicKroft disse...

Desculpa prima, mas não posso concordar com isso. Porquê sempre o cliché de auto-promoção? No meu mundo, talvez ingénuo, não vejo o Saramago a pensar, "Agora vou aqui bater na bíblia um pouquito para ganhar uns reais e fazer mais um court tennis nas traseiras". Não parece que um prémio Nobel da idade dele se queira promover mais.

Anónimo disse...

Não vês? Ele anda caladinho o tempo todo e dps é altura de lançar um livro novo e 'bora lá lançar polémica. Sempre assim foi. Não estou a dizer que ele é o rei dos manipuladores, mas ele não é um inocentezinho que dps de mandar a bomba se encolhe no seu canto e diz "mas era só uma opinião..."

ZiCkRuFt disse...

lothlorien:

Eu sei e está à vista que José Saramago é uma pessoa de cariz muito polémico. E a uma pessoa assim não se atribui a qualidade do bom-senso e da moderação, contudo ponderado e inteligente todos sabemos que é. Nunca levou o politicamente correcto como expressão do seu dia-a-dia, tal como não o fazem por exemplo José Mourinho ou até José Cid. Não obstante, eu não aplaudo as suas declarações e atitudes, pois as figuras públicas têm um papel preponderante na sociedade e a moderação por vezes é uma virtude. Mas todo este meu "desabafo", vai muito além do que José Saramago possa dizer e, em verdade, esta temática serve como vector para o cerne da questão, que são as pessoas.
Em Biologia nós temos duas expressões que Darwin imortalizou: adaptação e selecção natural. A adaptação surge quando as espécies apresentam um determinado conjunto de características que lhes são favoráveis naquele meio, naquele período. Estas características são perpetuadas por selecção natural. Será que este país com quase 87 anos de Saramago e 62 da sua literatura não se encontrará adaptado com fim a perpetuar essa adaptação? É que o meio entretanto mudou... Ou vamos precisar de milhões de anos como ocorre na Natureza? Digo Saramago, tal como ele engenhosamente cria a metáfora à volta de uma cegueira no seu famoso Ensaio. E mais uma vez, ele prova a sua razão.

Quanto ao facto de tudo ser uma "manobra de auto-promoção", reservo algumas limitações relativamente a isso. Pode sê-lo, pode não sê-lo e até pode sê-lo por uma conveniência instantânea. Contudo não acredito que é calculado. Ele tem tempo de antena quando lança um livro, pois ele já está pouco importado com o que as pessoas pensam e porque elas também não estão dispostas a ouvi-lo.

O livro vai vender muito. Isso é uma certeza :P

Bj ;)

Anónimo disse...

A tua resposta foi toda linda, mas eu continuo a não gostar dele lol E não é de agora, é desde que me lembro de já ter discernimento. São gostos. Da mesma maneira que gosto muito de Herman Hesse e há quem ache aquilo demasiado hermético e sem sentido nenhum. Ou quem goste muito de Nicholas Sparks e eu vejo os livros dele como dramalhões. Ou ainda quem veja no Tarantino um génio, e eu não =P

Beijinhos

super dentuças disse...

Bem, antes de mais parabèns pelo post!! Como fa numero um do Senhor (do Saramago falo, nao do Outro) nao poderia concordar mais. Poderei è ainda lancar mais umas achas pra fogueira desta saudavel discussao... Alguem se lembra de ver polemica aquando do lancamento do recente A Viagem do Elefante? Alguem viu polemica aqundo do lancamento do Cadernos? Da Historia do Cerco de Lisboa? Da CAverna? De quantos outros titulos? Agr o senhor é tido como manipulador e lancador propositado de polemica paa vender? So me recordo da polemica do Evangelho e com Caim agora. De resto a polemica foi lancada por atitudes incriveis como um "auto-exilio", o veto de uma obra-prima a um concurso importantissimo, e outras coisas que tais. E eu conheco Saramago desde antes da sua fama com o Nobel. O povao nao esta habituado a que digam coisas como "Deus foi inventado pelo Homem". O povao nao aguenta que digam coisas que nao estao formatadas para ouvir ou entender. Nao é preciso gostar do Sr nem da sua escrita. O "problema" aqui é vivermos num país onde convivem mentes brilhantes com mentes... enfim... pequeninas, para nao ferir susceptibilidades.

Anónimo disse...

Não me vejo como 'povão'; pelo contrário, vejo-me como alguém com apurado sentido crítico. Nesse sentido,parece-me que existe um duplo padrão.Ele pode dizer e 'denunciar' o que bem lhe apetecer, mas ninguém o pode contradizer porque estão a limitar a liberdade de expressão. Aparentemente, a liberdade de expressão só funciona para um lado... Já o disse a alguém, mas repito-o aqui: as liberdades não são ilimitadas e devem ser exercidas com bom-senso e responsabilidade. Quem não o faz, habilita-se a que lhe respondam na mesma moeda. Não defendo a atitude do eurodeputado, defendo sim o seu direito a expressar-se contra a o opinião de Saramago.
A tolerância tem de ser mútua, só assim funciona uma sociedade democrática.

(é a lohtlorien, não me apeteceu fazer login =P)